O Jason linkou
aqui o que o Marcelo postou
aqui. Como eu falei lá no Copo Sujo, isto me "encorajou" a rever este texto que eu escrevi no ano passado e que acabei deixando de lado.
Com o tema sempre oportuno, segue aí! O texto ficou muito grande, assim como é a preocupação que causa.
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Uma das velhas imagens da contradição... |
Como já disse, este texto já estava escrito há um tempo, mas na época, com outros assuntos em voga no FEF, resolvi esperar outro momento. O que não foi surpreendente é que não faltaram motivos para publicá-lo, pois semana após semana, seja aqui ou lá fora, alguma quebradeira organizada faz pano de fundo para os jogos.
Por que a guerra? Trata-se de uma carta enviada por Einstein destinada a Freud, a qual este prontamente respondeu. Datada de 1932, a troca de correspondências se deu por interesse da Liga das Nações (seria a ONU daqueles tempos?) em realizar debates de intelectuais acerca de temas relevantes para a sociedade.
Einstein parte de uma questão central: Como livrar a humanidade da sempre iminente ameaça de guerra? Daí, traz algumas respostas e outras indagações. Em linhas gerais, acredita que a instituição de um órgão superior e autônomo (tal como é idealizada a ONU) seria o primeiro passo. Contudo, isto exigiria também grande renúncia por parte das nações no que se refere à soberania destas. O grande físico supõe que alguns mecanismos conseguem de maneira precisa fazer com que os seres se mobilizem para as guerras e que uma razão possível pra a suscetibilidade é que existe no próprio homem um “desejo de ódio e destruição”. A questão agora é: É possível controlar a evolução do homem tornando-o à prova de tal destrutividade?
Freud, além de concordar com a fala de Einstein, acrescenta pontos que são cruciais para o nosso interesse. Em primeiro lugar, as guerras teriam solução se houvesse uma instituição central que mediasse as relações entre as partes. Ora, no contexto em que pretendemos discutir, vemos tentativas um tanto frustrantes por parte do poder público em acabar com o confronto violento das torcidas. Forças que vão desde a polícia até o Ministério Público têm se demonstrado ineficientes quando o assunto é a violência que circunda o cenário do futebol brasileiro. Vemos no dia-a-dia que a mera existência de tais instituições não basta. Freud também sabia disto e indica que as leis “irão determinar o grau em que, se a segurança da vida comunal deve ser garantida, cada indivíduo deve abrir mão de sua liberdade pessoal de utilizar sua força para fins violentos. Um estado de equilíbrio dessa espécie porém, só é concebível teoricamente. Na realidade, a situação complica-se pelo fato de que, desde os seus primórdios, a comunidade abrange elementos de força desigual – homens e mulheres, pais e filhos – e logo, como consequência da guerra e da conquista, também passa a incluir vencedores e vencidos, que se transformam em senhores e escravos” (p.199). Desta forma, a falha das instituições controladoras é estrutural e, pelos seus métodos, incorrigível.
Ademais, para que um equilíbrio total desta forma pudesse ser efetivo, a sociedade precisaria estar fortemente unida por duas coisas: o poder, força coercitiva da violência e; vínculos afetivos entre os membros pela identificação. Ora, tais laços nunca foram tão fortes e estáveis. Em vez disso, a descontinuidade é a marca histórica da humanidade. As leis existem sim, é verdade. Mas a lei, “ainda é violência,pronta a se voltar contra qualquer indivíduo que se lhe oponha; funciona pelos mesmos métodos e persegue os mesmos objetos”(p.199). O efeito disto também é bastante comum. Neste caso, saímos do espectro da briga entre torcidas e abrangemos para outras violências, outros poderes. Independente da cor da camisa, o torcedor é violentado pelos homens de farda no entorno ou dentro dos estádios, ainda que não tenham parte nos focos de tumulto. Independente do time, o torcedor é violentado pelos homens de terno e gravata quando, por exemplo, precisam adquirir ingressos a preços altos sem o correspondente retorno de conforto e respeito na prestação dos serviços. Não falo aqui de uma violência que justifique outra. Falo de diferentes formas de violência que incidem sobre todos os níveis de organização humana.
Claro está, penso eu, que a questão da guerra não se resume às motivações de um lado ou outro, seja esta de conquista (como nas guerras antigas) seja de extermínio (como em comunidades rivais).
Freud retoma a suposição de Einstein acerca do desejo de ódio e destruição para introduzir o que é fundamental na psicanálise: A teoria das pulsões. Existem, no ser humano, pulsões que “tendem a preservar e unir”, as pulsões EROticaS, sexuais, pulsões de vida; e há aquelas que “tendem a destruir e matar”, o que é agressivo, a pulsão de morte. Freud lembra que “nenhum desses dois instintos é menos essencial que o outro; os fenômenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambos. Ora, é como se um instinto de um tipo dificilmente pudesse operar isolado; está sempre acompanhado – ou como dizemos, amalgamado – por determinada quantidade do outro lado, que modifica o seu objetivo, ou, em determinados casos, possibilita a consecução desse objetivo” (p.203) (onde se lê instinto, leia-se pulsão).
A existência de torcidas (des)organizadas que tumultuam o espetáculo do futebol é antes um efeito do que uma causa da violência. Esta esteve sempre presente na humanidade. Não foi a Galoucura ou Máfia Azul ou qualquer outra que criou a intolerância, o desrespeito. Foi o próprio homem que, não freado em suas pulsões destrutivas, criou-se e criou a sociedade – que o recria a todo instante – pelas relações de poder. Relações estas que não cessam uma vez que “não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos no homem; pode-se tentar desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra” (p.205).
Resta-nos hoje (re)encontrar tais desvios, de forma que a agressividade seja mediada por Eros. Que toda a destrutividade inerente seja expressa nos cantos e ecos da torcida, por exemplo, ao se impor contra jogadores, árbitros, torcida adversária, etc, com hinos e coros. Mas que não passe disso. Não sejamos utópicos, mas consideremos que os laços afetivos e identificatórios podem sobrepor ao incansável da pulsão de morte. Que o confronto fique na palavra. E esta, a grande portadora de nossos desejos inconscientes, possa circular sem a necessidade de esbarrar na força física. Que o intelecto oriente o simbólico e não sucumba à barbárie da competição viril.
O que mais me aterroriza é que: se a humanidade evoluiu da disputa de poder pela violência para a disputa de poder pelo intelecto, a imagem dos estádios é a da involução. A barbárie se instaura pela violência física e institui falsos poderes. Posto que o poder esteja sempre em disputa (e pensar em uma evolução para igualdade é um ideal extremamente improvável de atingir), que ele volte a ser pelo discurso, por quem utilizará melhor o intelecto, pela torcida que conseguirá com mais precisão inflamar seu time em campo e destabilizar a capacidade futebolística do outro.
Das demandas de Einstein, chamou-me mais a atenção justamente aquela a que o pai da psicanálise não atendeu. Diz o físico: “estou convencido de que o senhor será capaz de sugerir métodos educacionais situados mais ou menos fora dos objetivos da política...” (p.193) – eu diria politicagem.
No final, não estamos mais diante apenas de torcidas rivais. Mas, deparamo-nos obrigatoriamente com nós mesmos, no que há de mais excessivamente repulsivo e projetado no outro. Suponho que não há métodos e, talvez também por isto Freud não tenha respondido a esta demanda. Mas, após girar bastante por estas idéias, obviamente sem solução (pois toda solução que existe hoje, vemos que é mentirosa) volto ao ponto em que intimamente tenho sempre trabalhado.
Ainda aposto na educação.
FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição standard brasileira. Vol XXII. Por que a guerra? (1932). Rio de Janeiro: Imago, 1996. Pg. 191-208.